Abri os olhos torcendo para que tudo não passasse de um sonho.
Eu estava acostumada a não ter nada, mas ficar trancada não era uma das coisas que eu fazia.
Ainda no quartinho mofado.
A chuva parara, mas o cheiro de mofo ainda tomava conta do ar.
O pouco ar que tinha lá dentro.
Fui até a janela quebrada.
Pensei em pulá-la, mas ficava bem em cima de um morro.
Meu medo não era a altura. Eu poderia pular sem quebrar um osso, porém eu estava muito visível de lá.
E o que não faltava era sombra de vigia.
- Abra. Agora mocinha.
Dei um salto com a batida na porta, e logo em seguida a voz.
Abri a mesma. Era demoniza.
- Como foi sua primeira noite de hospedagem?
Fiquei quieta. Como se ela precisasse de resposta.
- Quando eu perguntar, responda! Com o tempo irá aprender isso. Agora venha comigo.
- Para onde?
- Mandei você perguntar alguma coisa? Não. Então fique quieta. Siga-me.
Agressiva, arrogante dos infernos. A segui.
Quando eu saí do quarto, a desgraça tomou conta dos meus olhos.
Onde um dia antes tinham alguns poucos campos floridos, e uma claridade mórbida, agora era tomado por uma densa camada de fumaça preta.
Os campos sumiram, deixando apenas vestígios queimados.
A única coisa que se destacava na fumaça, era o palácio, antes com janelas e portas claras. Agora, com as mesmas escuras, impossibilitando a visão do que ocorria lá dentro.
As paredes foram pintadas de vinho, e haviam manchas de queimaduras nelas.
Em alguns locais do chão coberto de folhas secas, haviam faíscas ainda acesas.
- O que você fez aqui? – perguntei encabulada.
- Mais uma vez não mandei você abrir a matraca. Apenas dei um jeitinho. Isso daqui não tinha muita cara de inferno, tinha?
A fuzilei com os olhos. Como se ela se importasse. Virou o rosto e continuou andando.
Onde antes era o jardim, o meu jardim, havia uma pilastra gigante e escura.
- O que achou da decoração mais recente?
- Ridiculamente cruel. Diabo dos infernos.
- Obrigada. Me esforcei muito para deixar assim.
- Como conseguiu destruir isso em tão pouco tempo?
- Tenho ajudantes sabia? E é melhor manter sua boca fechada. Ninguém pediu suas opiniões por aqui.
Ela me arrastou até a pilastra e me mandou ficar lá.
- Se você se mexer terá sérios probleminhas.
Abaixei a cabeça. Só podia ser um pesadelo. Dos piores.
Em alguns minutos ela retornou com correntes de aço e um cadeado.
Ah, fala sério. Ela iria me amarrar ali?
Como resposta á minha pergunta silenciosa, ela me prendeu á pilastra.
- Vai ficar aqui por um tempinho.
Olhei-a confusa. Tempinho? Dessa vez que tempinho seria?
Ela não pronunciou mais nenhuma frase. Por determinado tempo ficou me encarando, esperando alguma reação, provavelmente.
Depois, se virou e retirou-se.
Aos poucos, as nuvens densas cederam, e as gotas de chuva escorriam no ar, até se quebrarem violentamente no chão.
O ritmo em que elas caiam começou a aumentar com o tempo, e em poucos minutos, chovia granizo.
O vento forte chicoteava meu rosto e o fazia arder.
Presa á pilastra eu esvaía todas as esperanças que algum dia existira em minha mente.
Escorreguei lentamente até sentar no chão, ainda acorrentada.
As correntes de aço rasgavam minha pele a cada movimento brusco.
Eu estava sozinha, e não queria nem imaginar o que estava acontecendo com Jane.
“Que péssima irmã eu sou” – Disse para mim mesma sob a chuva.
- Me larga! – Era a voz de Jane ao longe.
Ai que víbora aquela demoniza dos infernos.
***
A terra virara lama depois de tanta água derramada sobre ela.
O chão começava a se alagar, depois de algumas horas de chuva.
Eu havia dormido. Por quanto tempo não sei. Mas fora o suficiente para acordar coberta de água até a cintura.
Tentei me levantar, mas as correntes estavam deixando meu braço em carne viva.
Se a água não abaixasse eu passaria um tremendo sufoco debaixo d’água.
Se eu pudesse, diria que iria morrer.
Sofrer é muito pior do que a morte.
Ter que aturar a tortura por tempo suficiente até que ela chegue.
Agora, pior que isso, é ter que aturar a tortura, sabendo que a morte nunca mais chegaria.
Pois eu já a havia alcançado.
Torturada, meus dias foram se passando. Sozinha, sem comida, sem bebida, sem esperança.
Pela primeira vez senti algo gelado que corria por meu rosto, sem ser a chuva.
Eu estava realmente chorando dessa vez.
O gosto da única lágrima que escorria do meu rosto se diferenciava das gotas de chuva.
O gosto salgado me relembrava os melhores e piores momentos da vida que um dia eu tivera.
A notícia da morte de minha mãe. As lembranças do dia em que meu pai fora levado internado.
Mas também o dia em que eu e Jane arrumamos um emprego.
O dia em que nós duas alcançamos idade suficiente para ser livre, e não precisar mais se esconder de todos, pelo fato de sermos órfãs vivendo sozinhas.
E os dias de nossas mortes.
Agora, sob a chuva torrencial eu revivia cada momento que um dia eu vivera.
Nesse instante, eu realmente me senti no inferno.
Demoniza passava na minha frente algumas vezes e me assistia sofrer.
Eu poderia xingá-la, se tivesse forças suficientes para isso.
Eu estava imunda, sangrando, machucada e morrendo de fome. Se ela queria me castigar mais, eu duvidava que pudesse haver algo muito pior.
- Desgraçada .. – foi o único sussurro que consegui colocar para fora.
Eu pretendia pronunciar cada sílaba com fúria, porém as letras, da forma que saíram, pareceram mais uma súplica.
Como resposta ao xingamento, recebi um tapa. Se eu estivesse no estado de sempre, seria apenas uma mão gelada encostando no meu rosto sem nenhum impacto. Na fraqueza que eu me encontrava, parecia uma faca rasgando minha face.
A chuva parou de repente.
Em alguns minutos vultos surgiram, retirando as folhas molhadas do chão.
Demoniza me assistia sentada.
Senti cheiro de fumaça do vindo do lado oposto á onde eu estava.
Ignorei.
Em alguns minutos eu estava rodeada de galhos e folhas secas.
Três coisas aconteceram em seguida:
Um. Demoniza acendeu um fósforo.
Dois. Ela o jogou nos galhos secos.
Três. Percebi que, tanto eu como Jane, estávamos sendo queimadas, conscientemente.
***
Eu ardia no fogo do inferno.
Demoniza ria da minha cara e via o sofrimento e angustia em meus olhos.
Ela sabia que eu havia percebido sobre Jane.
A cada meio minuto ela se virava para observar o fogo no outro lado.
Esperava por berros, alguma prova barulhenta do nosso sofrimento.
Mas ambas sabíamos que isso seria dar o gosto de vitória á ela.
Além disso, eu não tinha forças para gritar.
Jane, sempre fora forte o suficiente. Ela poderia estar fraca como eu, ou não.
Fechei os olhos, e torci para que com o tempo eu não fosse mais capaz de sentir meu corpo, nem a dor presente nele.
Quando ergui novamente a cabeça demoniza não se encontrava mais presente.
Virei a cabeça.
Tanto as minhas chamas, quanto as de Jane, se viam acesas.
As faíscas subiam no ar, e estalavam ruidosamente.
O cheiro de fumaça entrava em mim, enchia meus pulmões e s intoxicava.
Em pouco tempo não conseguia mais respirar, e então, fiquei inconsciente.
***
Era noite escura. As estrelas não apareciam no céu. As nuvens cinzas encobriam tudo próximas a si.
Eu sangrava demasiadamente sobre o chão de pedra.
Minha pele não cobria mais os braços e pernas, que agora estavam em carne viva.
Eu ardia. Mal conseguia me mexer.
Não ouvia nada mais além de sussurros ao longe.
Algo ou alguém vinha em minha direção carregando algo que aparentava ser pesado.
Era demoniza com Jane nos braços.
Ela não estava descansando eternamente. Era pior.
Ela estava viva. E se contorcia nos braços do demônio.
Sangrava até mais do que eu, e não era apenas seus braços e pernas que estavam em carne viva.
Seu tórax estava marcado de chicotadas, que formavam feridas secas.
Eu estremeci.
Demoniza colocou Jane ao meu lado.
Ambas estávamos no chão, doloridas.
Ela, três vezes pior que eu.
Então um vulto surgiu por detrás da Demoniza.
Ele tinha um balde nas mãos.
Não reconheci o que era, até ele se aproximar mais.
Então eu percebi o que era. E não fui a única. A expressão de pavor de Jane mostrou que ela também havia reconhecido o conteúdo do balde.
Sal.
Aquilo nas feridas abertas seria dor e sofrimento na certa.
Tentei me levantar e sair correndo.
Eu não conseguia me mover um centímetro sequer.
Derrotada, desisti.
Olhei para Jane.
Ela estava de olhos fechados e a boca contorcida, esperando pelo pior.
Fiz o mesmo.
Quando abri os olhos, nada mais estava ali.
Jane sumira. Idem os vultos.
Apenas demoniza me olhava.
Com alivio percebi que eu imaginara tudo aquilo.
Estava inconscientemente perturbada.
Mas eu sabia que ela era capaz daquilo e de muito mais.
***
Pelo modo como a lua estava posicionada no céu, eu diria que eram nove e meia quando demoniza chegou para me soltar.
O fogo já havia sido apagado pela chuva.
As correntes pioraram os machucados no meu braço, e eles jorravam sangue.
Minhas pernas estavam em cinzas, e ardiam a cada movimento.
O fogo não queimara meu corpo internamente.
Apenas a parte externa.
As correntes caíram no chão, e logo após isso, demoniza saiu andando sem dizer uma palavra sequer.
Tentei me levantar mais não consegui.
A fome me consumia, assim como a sede e a dor que eu sentia.
O que estaria acontecendo com Jane naquele momento?
***
Eu não sabia o que estava acontecendo, ou aonde eu estava. Mas a cena se repetia.
E dessa vez, eu tinha certeza de que não era um sonho.
Eu estava tendo a sensação de d’javú que me perturbava.
Eu estava deitada, me contorcendo no chão, e demoniza apareceu com Jane em seus braços, depois deitando-a a meu lado e toda cena se repetiu.
Não era onde eu havia sonhado.
Não era ao lado da pilastra.
Estávamos em um quarto. Com cheiro de mofo. Igual ao meu.
Em alguns minutos ficamos sozinhas. Se remoendo com a dor.
Eu queria que novamente fosse um sonho.
Não era.
Por alguns segundos eu e Jane realizamos os mínimos movimentos possíveis em total acordo.
Parecíamos um espelho. Até que nossas mãos se tocaram.
Quando finalmente conseguimos apertar uma a mão da outra, fechamos os olhos e creio que novamente ficamos inconscientes.
***
Ouvia vozes ao longe. Não reconhecia nenhuma.
Abri os olhos com cuidado, analisando cada centímetro de onde estava.
Agora eu havia sido tirada do quarto mofado.
Jane não estava perto de mim. Demoniza também não.
Eu não reconhecia ninguém.
As pessoas mais próximas de meu corpo eram duas garotas. Uma delas era corada de cabelos negros como breu e longos. Chegavam até sua cintura.
A outra garota era loira dos cabelos curtos. Era branca feito neve. Seus lábios eram delicados e tinham um brilho natural.
Ambas conversavam algo que eu não compreendia muito bem.
Tentei falar algo mais a dor ainda me tomava. Depois de algum tempo percebi que estava amarrada.
Elas não pareciam nem um pouco com os vultos da Demoniza.
Eu queria gritar. Não podia mais uma vez ser torturada.
Por algum motivo elas pararam de discutir e em um único movimento, ambas me encaravam.
- Oi. Eu sei que você deve estar assustada, mas não queríamos que você fugisse.
- Como se eu conseguisse. – sussurrei. Cada palavra que saía de minha boca me causava tremenda dor.
- Não podíamos correr o risco. Prazer sou Rosane. – disse-me a morena dos olhos verdes. Sob os cabelos negros eu quase pude ver Nate estampado em seu rosto. A semelhança era incrível.
- Por que estou aqui com vocês? – perguntei confusa.
- A encontramos jogada em um quarto mofado. – disse-me a loira de olhos negros.
- E onde está Jane?
- Quem?
- A outra garota que estava do meu lado. – Pronunciava cada palavra com cuidado. As dores ainda tinham muito efeito sobre cada ação que eu exercia.
- Não conseguimos tirá-la de lá a tempo. Depois que pegamos você, Morgan entrou no quarto e quase nos viu.
- Desculpe. Quem entrou no quarto? – seria outra sombra da Demoniza?
- Demoniza. – disse a loira por fim.
- A conhecem? – perguntei encabulada.
- Se conhecemos?! Sofremos até mais do que você. E depois, com algumas dificuldades, fugimos para o mundo humano. De vez em quando voltamos para visitar alguns amigos.
- Qual o nome que vocês disseram mesmo? – tudo era novidade para mim.
- Morgan. Depois de umas investigações finalmente descobrimos seu nome.
- Ah. – disse por fim. E então desisti das perguntas. Cada movimento me doía muito.
Por algumas horas elas me contaram suas histórias, com detalhes fascinantes. Descobri muitas coisas que aconteceram á Rosane e sua amiga – de nome Nathalie.
E então, para meu espanto, descobri também que não estávamos tão longe do palácio, apenas atrás de uns arbustos, que se mantiveram conservados da destruição causada por Demoniza.
Rosane e Nathalie cuidaram de mim por alguns dias, depois passaram a ficar menos comigo, indo e voltando do mundo humano. Corajosas – pensei.
***
Em uma manhã qualquer acordei com o barulho dos arbustos se movendo.
- Ora, ora, ora. Se não são as duas fugitivas. – novamente Demoniza. – Dessa vez, daqui vocês não saem mais.
Fechei os olhos torcendo para que quando os abrisse, ela sumisse.
- E você mocinha – nada. Era real. Ela se dirigia a mim agora – vai voltar para o seu quartinho. E se uma dessas mocinhas te levarem de volta, pode ter certeza que as consequências para você serão cada vez piores.
Ainda não estava em condições de me mover, então esperei que um de seus vultos me carregasse.
Aos poucos fui me distanciando de Rosane e Nathalie – em alguns minutos eu só conseguia ver seus cabelos um pouco á frente de Demoniza – e logo me vi novamente no quarto mofado.
Novamente abandonada.