Amor Após A Morte ...

Amor Após A Morte ...
Livro de Dαnielle M. Gomez e Grαziellα C. Aoki

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

17. Abandonada - Maríe

Abri os olhos torcendo para que tudo não passasse de um sonho.
Eu estava acostumada a não ter nada, mas ficar trancada não era uma das coisas que eu fazia.
Ainda no quartinho mofado.
A chuva parara, mas o cheiro de mofo ainda tomava conta do ar.
O pouco ar que tinha lá dentro.
Fui até a janela quebrada.
Pensei em pulá-la, mas ficava bem em cima de um morro.
Meu medo não era a altura. Eu poderia pular sem quebrar um osso, porém eu estava muito visível de lá.
E o que não faltava era sombra de vigia.
- Abra. Agora mocinha.
Dei um salto com a batida na porta, e logo em seguida a voz.
Abri a mesma. Era demoniza.
- Como foi sua primeira noite de hospedagem?
Fiquei quieta. Como se ela precisasse de resposta.
- Quando eu perguntar, responda! Com o tempo irá aprender isso. Agora venha comigo.
- Para onde?
- Mandei você perguntar alguma coisa? Não. Então fique quieta. Siga-me.
Agressiva, arrogante dos infernos. A segui.
Quando eu saí do quarto, a desgraça tomou conta dos meus olhos.
Onde um dia antes tinham alguns poucos campos floridos, e uma claridade mórbida, agora era tomado por uma densa camada de fumaça preta.
Os campos sumiram, deixando apenas vestígios queimados.
A única coisa que se destacava na fumaça, era o palácio, antes com janelas e portas claras. Agora, com as mesmas escuras, impossibilitando a visão do que ocorria lá dentro.
As paredes foram pintadas de vinho, e haviam manchas de queimaduras nelas.
Em alguns locais do chão coberto de folhas secas, haviam faíscas ainda acesas.
- O que você fez aqui? – perguntei encabulada.
- Mais uma vez não mandei você abrir a matraca. Apenas dei um jeitinho. Isso daqui não tinha muita cara de inferno, tinha?
A fuzilei com os olhos. Como se ela se importasse. Virou o rosto e continuou andando.
Onde antes era o jardim, o meu jardim, havia uma pilastra gigante e escura.
- O que achou da decoração mais recente?
- Ridiculamente cruel. Diabo dos infernos.
- Obrigada. Me esforcei muito para deixar assim.
- Como conseguiu destruir isso em tão pouco tempo?
- Tenho ajudantes sabia? E é melhor manter sua boca fechada. Ninguém pediu suas opiniões por aqui.
Ela me arrastou até a pilastra e me mandou ficar lá.
- Se você se mexer terá sérios probleminhas.
Abaixei a cabeça. Só podia ser um pesadelo. Dos piores.
Em alguns minutos ela retornou com correntes de aço e um cadeado.
Ah, fala sério. Ela iria me amarrar ali?
Como resposta á minha pergunta silenciosa, ela me prendeu á pilastra.
- Vai ficar aqui por um tempinho.
Olhei-a confusa. Tempinho? Dessa vez que tempinho seria?
Ela não pronunciou mais nenhuma frase. Por determinado tempo ficou me encarando, esperando alguma reação, provavelmente.
Depois, se virou e retirou-se.
Aos poucos, as nuvens densas cederam, e as gotas de chuva escorriam no ar, até se quebrarem violentamente no chão.
O ritmo em que elas caiam começou a aumentar com o tempo, e em poucos minutos, chovia granizo.
O vento forte chicoteava meu rosto e o fazia arder.
Presa á pilastra eu esvaía todas as esperanças que algum dia existira em minha mente.
Escorreguei lentamente até sentar no chão, ainda acorrentada.
As correntes de aço rasgavam minha pele a cada movimento brusco.
Eu estava sozinha, e não queria nem imaginar o que estava acontecendo com Jane.
“Que péssima irmã eu sou” – Disse para mim mesma sob a chuva.
- Me larga! – Era a voz de Jane ao longe.
Ai que víbora aquela demoniza dos infernos.
***
A terra virara lama depois de tanta água derramada sobre ela.
O chão começava a se alagar, depois de algumas horas de chuva.
Eu havia dormido. Por quanto tempo não sei. Mas fora o suficiente para acordar coberta de água até a cintura.
Tentei me levantar, mas as correntes estavam deixando meu braço em carne viva.
Se a água não abaixasse eu passaria um tremendo sufoco debaixo d’água.
Se eu pudesse, diria que iria morrer.
Sofrer é muito pior do que a morte.
Ter que aturar a tortura por tempo suficiente até que ela chegue.
Agora, pior que isso, é ter que aturar a tortura, sabendo que a morte nunca mais chegaria.
Pois eu já a havia alcançado.
Torturada, meus dias foram se passando. Sozinha, sem comida, sem bebida, sem esperança.
Pela primeira vez senti algo gelado que corria por meu rosto, sem ser a chuva.
Eu estava realmente chorando dessa vez.
O gosto da única lágrima que escorria do meu rosto se diferenciava das gotas de chuva.
O gosto salgado me relembrava os melhores e piores momentos da vida que um dia eu tivera.
A notícia da morte de minha mãe. As lembranças do dia em que meu pai fora levado internado.
Mas também o dia em que eu e Jane arrumamos um emprego.
O dia em que nós duas alcançamos idade suficiente para ser livre, e não precisar mais se esconder de todos, pelo fato de sermos órfãs vivendo sozinhas.
E os dias de nossas mortes.
Agora, sob a chuva torrencial eu revivia cada momento que um dia eu vivera.
Nesse instante, eu realmente me senti no inferno.
Demoniza passava na minha frente algumas vezes e me assistia sofrer.
Eu poderia xingá-la, se tivesse forças suficientes para isso.
Eu estava imunda, sangrando, machucada e morrendo de fome. Se ela queria me castigar mais, eu duvidava que pudesse haver algo muito pior.
- Desgraçada .. – foi o único sussurro que consegui colocar para fora.
Eu pretendia pronunciar cada sílaba com fúria, porém as letras, da forma que saíram, pareceram mais uma súplica.
Como resposta ao xingamento, recebi um tapa. Se eu estivesse no estado de sempre, seria apenas uma mão gelada encostando no meu rosto sem nenhum impacto. Na fraqueza que eu me encontrava, parecia uma faca rasgando minha face.
A chuva parou de repente.
Em alguns minutos vultos surgiram, retirando as folhas molhadas do chão.
Demoniza me assistia sentada.
Senti cheiro de fumaça do vindo do lado oposto á onde eu estava.
Ignorei.
Em alguns minutos eu estava rodeada de galhos e folhas secas.
Três coisas aconteceram em seguida:
Um. Demoniza acendeu um fósforo.
Dois. Ela o jogou nos galhos secos.
Três. Percebi que, tanto eu como Jane, estávamos sendo queimadas, conscientemente.
***
Eu ardia no fogo do inferno.
Demoniza ria da minha cara e via o sofrimento e angustia em meus olhos.
Ela sabia que eu havia percebido sobre Jane.
A cada meio minuto ela se virava para observar o fogo no outro lado.
Esperava por berros, alguma prova barulhenta do nosso sofrimento.
Mas ambas sabíamos que isso seria dar o gosto de vitória á ela.
Além disso, eu não tinha forças para gritar.
Jane, sempre fora forte o suficiente. Ela poderia estar fraca como eu, ou não.
Fechei os olhos, e torci para que com o tempo eu não fosse mais capaz de sentir meu corpo, nem a dor presente nele.
Quando ergui novamente a cabeça demoniza não se encontrava mais presente.
Virei a cabeça.
Tanto as minhas chamas, quanto as de Jane, se viam acesas.
As faíscas subiam no ar, e estalavam ruidosamente.
O cheiro de fumaça entrava em mim, enchia meus pulmões e s intoxicava.
Em pouco tempo não conseguia mais respirar, e então, fiquei inconsciente.
***
Era noite escura. As estrelas não apareciam no céu. As nuvens cinzas encobriam tudo próximas a si.
Eu sangrava demasiadamente sobre o chão de pedra.
Minha pele não cobria mais os braços e pernas, que agora estavam em carne viva.
Eu ardia. Mal conseguia me mexer.
Não ouvia nada mais além de sussurros ao longe.
Algo ou alguém vinha em minha direção carregando algo que aparentava ser pesado.
Era demoniza com Jane nos braços.
Ela não estava descansando eternamente. Era pior.
Ela estava viva. E se contorcia nos braços do demônio.
Sangrava até mais do que eu, e não era apenas seus braços e pernas que estavam em carne viva.
Seu tórax estava marcado de chicotadas, que formavam feridas secas.
Eu estremeci.
Demoniza colocou Jane ao meu lado.
Ambas estávamos no chão, doloridas.
Ela, três vezes pior que eu.
Então um vulto surgiu por detrás da Demoniza.
Ele tinha um balde nas mãos.
Não reconheci o que era, até ele se aproximar mais.
Então eu percebi o que era. E não fui a única. A expressão de pavor de Jane mostrou que ela também havia reconhecido o conteúdo do balde.
Sal.
Aquilo nas feridas abertas seria dor e sofrimento na certa.
Tentei me levantar e sair correndo.
Eu não conseguia me mover um centímetro sequer.
Derrotada, desisti.
Olhei para Jane.
Ela estava de olhos fechados e a boca contorcida, esperando pelo pior.
Fiz o mesmo.
Quando abri os olhos, nada mais estava ali.
Jane sumira. Idem os vultos.
Apenas demoniza me olhava.
Com alivio percebi que eu imaginara tudo aquilo.
Estava inconscientemente perturbada.
Mas eu sabia que ela era capaz daquilo e de muito mais.
***
Pelo modo como a lua estava posicionada no céu, eu diria que eram nove e meia quando demoniza chegou para me soltar.
O fogo já havia sido apagado pela chuva.
As correntes pioraram os machucados no meu braço, e eles jorravam sangue.
Minhas pernas estavam em cinzas, e ardiam a cada movimento.
O fogo não queimara meu corpo internamente.
Apenas a parte externa.
As correntes caíram no chão, e logo após isso, demoniza saiu andando sem dizer uma palavra sequer.
Tentei me levantar mais não consegui.
A fome me consumia, assim como a sede e a dor que eu sentia.
O que estaria acontecendo com Jane naquele momento?
***
Eu não sabia o que estava acontecendo, ou aonde eu estava. Mas a cena se repetia.
E dessa vez, eu tinha certeza de que não era um sonho.
Eu estava tendo a sensação de d’javú que me perturbava.
Eu estava deitada, me contorcendo no chão, e demoniza apareceu com Jane em seus braços, depois deitando-a a meu lado e toda cena se repetiu.
Não era onde eu havia sonhado.
Não era ao lado da pilastra.
Estávamos em um quarto. Com cheiro de mofo. Igual ao meu.
Em alguns minutos ficamos sozinhas. Se remoendo com a dor.
Eu queria que novamente fosse um sonho.
Não era.
Por alguns segundos eu e Jane realizamos os mínimos movimentos possíveis em total acordo.
Parecíamos um espelho. Até que nossas mãos se tocaram.
Quando finalmente conseguimos apertar uma a mão da outra, fechamos os olhos e creio que novamente ficamos inconscientes.
***
Ouvia vozes ao longe. Não reconhecia nenhuma.
Abri os olhos com cuidado, analisando cada centímetro de onde estava.
Agora eu havia sido tirada do quarto mofado.
Jane não estava perto de mim. Demoniza também não.
Eu não reconhecia ninguém.
As pessoas mais próximas de meu corpo eram duas garotas. Uma delas era corada de cabelos negros como breu e longos. Chegavam até sua cintura.
A outra garota era loira dos cabelos curtos. Era branca feito neve. Seus lábios eram delicados e tinham um brilho natural.
Ambas conversavam algo que eu não compreendia muito bem.
Tentei falar algo mais a dor ainda me tomava. Depois de algum tempo percebi que estava amarrada.
Elas não pareciam nem um pouco com os vultos da Demoniza.
Eu queria gritar. Não podia mais uma vez ser torturada.
Por algum motivo elas pararam de discutir e em um único movimento, ambas me encaravam.
- Oi. Eu sei que você deve estar assustada, mas não queríamos que você fugisse.
- Como se eu conseguisse. – sussurrei. Cada palavra que saía de minha boca me causava tremenda dor.
- Não podíamos correr o risco. Prazer sou Rosane. – disse-me a morena dos olhos verdes. Sob os cabelos negros eu quase pude ver Nate estampado em seu rosto. A semelhança era incrível.
- Por que estou aqui com vocês? – perguntei confusa.
- A encontramos jogada em um quarto mofado. – disse-me a loira de olhos negros.
- E onde está Jane?
- Quem?
- A outra garota que estava do meu lado. – Pronunciava cada palavra com cuidado. As dores ainda tinham muito efeito sobre cada ação que eu exercia.
- Não conseguimos tirá-la de lá a tempo. Depois que pegamos você, Morgan entrou no quarto e quase nos viu.
- Desculpe. Quem entrou no quarto? – seria outra sombra da Demoniza?
- Demoniza. – disse a loira por fim.
- A conhecem? – perguntei encabulada.
- Se conhecemos?! Sofremos até mais do que você. E depois, com algumas dificuldades, fugimos para o mundo humano. De vez em quando voltamos para visitar alguns amigos.
- Qual o nome que vocês disseram mesmo? – tudo era novidade para mim.
- Morgan. Depois de umas investigações finalmente descobrimos seu nome.
- Ah. – disse por fim. E então desisti das perguntas. Cada movimento me doía muito.
Por algumas horas elas me contaram suas histórias, com detalhes fascinantes. Descobri muitas coisas que aconteceram á Rosane e sua amiga – de nome Nathalie.
E então, para meu espanto, descobri também que não estávamos tão longe do palácio, apenas atrás de uns arbustos, que se mantiveram conservados da destruição causada por Demoniza.
Rosane e Nathalie cuidaram de mim por alguns dias, depois passaram a ficar menos comigo, indo e voltando do mundo humano. Corajosas – pensei.
***
Em uma manhã qualquer acordei com o barulho dos arbustos se movendo.
- Ora, ora, ora. Se não são as duas fugitivas. – novamente Demoniza. – Dessa vez, daqui vocês não saem mais.
Fechei os olhos torcendo para que quando os abrisse, ela sumisse.
- E você mocinha – nada. Era real. Ela se dirigia a mim agora – vai voltar para o seu quartinho. E se uma dessas mocinhas te levarem de volta, pode ter certeza que as consequências para você serão cada vez piores.
Ainda não estava em condições de me mover, então esperei que um de seus vultos me carregasse.
Aos poucos fui me distanciando de Rosane e Nathalie – em alguns minutos eu só conseguia ver seus cabelos um pouco á frente de Demoniza – e logo me vi novamente no quarto mofado.
Novamente abandonada.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

16. Verdade e Consequência - Maríe

Ahaha. Hilário, simplesmente hilário.
Demoniza no chão.
Até parece que eu iria realmente ajuda-la.
Me virei e saí andando.
Olhei rapidamente para Jane, esperando que ela me visse dando um último adeus.
Ela não prestava atenção em mim, então me virei e fui embora.
Será que Nate iria muito para longe?
Em algumas horas eu saberia disso.
Olhei o relógio.
Seis e meia. Eu tinha uma hora.
***
Quando eu já estava no quarto tomei meu demorado banho e me vesti com uma roupa clara qualquer.
Sempre sem abandonar meus all stars e minha tiara.
Agora o que eu não sabia era ONDE me encontrar com Nate.
Ele não dissera nada, nem eu, para variar.
Pulei a janela e fui para o jardim, era sempre lá que eu ficava. Esperava que ele soubesse.
***
Oito horas.
Onde estava Nate?
Eu estava quase indo para meu quarto, quando senti algo, que fez minhas pálpebras pesarem e meus olhos cederem.
A última coisa que senti foi meu corpo caindo adormecido no chão.

***
- Maríe? Maríe? – Era a voz de Nate em meu ouvido.
Eu não consegui responder, apenas abri os olhos e encarei os seus verde-água sob a escuridão de seus cabelos me fitando.
Quando finalmente pude sentir as palavras saindo de minha boca, Nate me interrompeu.
- Você encostou em uma planta venenosa e acabou desmaiando.
Se não fosse morta, estaria morta AGORA.
- Ahaha. – Era de certa forma irônico. – Ahn ... então .. nossa conversa?
- Ah, bem... Eu vou viajar depois de amanhã.
- Para onde?
- Coréia do Sul.
- Fazer o que tão longe?
- Temos que ficar de vigia por um tempo. Também somos um tipo de anjos da guarda de algumas pessoas. Alguns assassinatos injustos por lá. Não poderemos sair até que os criminosos sejam presos. Bain irá comigo, e alguns anjos da guarda também.
- Ahn ... Vai demorar muito?
- Até os criminosos serem presos. Isso pode levar alguns anos.
- ANOS?! – como ele podia falar aquilo tão calmamente?!
- Você tem a eternidade lembra? E, aliás, o que minha falta traria pra você?
- Meu melhor amigo, lembra?
- Ah, falta de melhor amigo. Entendo. Bem, viemos conversar isso. Já te expliquei, agora eu vou. Tchau.
- Espera aí. – Ele se virou pra mim, buscando esperanças nas minhas palavras.
- Pois não? – Ele arqueou uma sobrancelha.
- Por quê se atrasou tanto?
- Atrasei-me para quê?
- Engraçadinho. Marcamos de nos encontrar para você me explicar tudo. O que não é realmente um encontro.
- Marcamos de nos encontrar mas não é um encontro. Sempre irônica Maríe. – Ele esperou alguma reação minha, fato, mas fiquei quieta. – Bem, te procurei por todos os cantos, e então me lembrei do jardim. Agora eu vou.
Enquanto ele andava eu fiquei quieta. Ele não andava com passos rápidos então realmente esperava uma reação minha.
- Ei! – gritei.
Ele se virou lentamente.
- Pode passar aqui amanhã? Sabe, já que você só vai depois de amanhã.
- Arrumando as malas. – ele respondeu sem expressão.
- Vinte e quatro horas? – arqueei uma sobrancelha.
- Posso passar bem de noite.
- Eu durmo á tarde e aguento passar a noite acordada. – Pisquei para seus olhos profundos.
Ele assentiu com a cabeça e se virou. Continuou andando até que o perdi de vista.
Parada por alguns instantes, de repente ouvi uma voz sussurrando em meu ouvido:
- Até ‘ melhor amiga’.
Virei-me rapidamente para cima, mas antes de conseguir abraça-lo, vi suas asas batendo ritmicamente, fazendo-o subir cada vez mais.
E a cada encontro que tínhamos, eu perdia minha chance de tê-lo só para mim.
Mas agora eu tinha uma decisão. Na próxima noite, meus lábios encontrariam os dele.
***
Acordei feliz, sabe-se lá porque – talvez pela quase certeza de que beijaria um anjo naquele dia – e tomei meu banho.
Com meu short e minha blusa no estilo de sempre – sem jamais deixar meus all stars e tiaras – desci para tomar café.
O cabelo ruivo ainda molhado se esvoaçava com o vento e me fazia arrepiar com o vento frio do lado de fora.
Quando cheguei á metade da escada, subi de volta. Eu não aguentaria o tempo do dia e então peguei uma blusa de frio com touca.
A vesti rapidamente e agora sim fui para o café.
Passei pelo longo corredor e percebi uma fresta da porta de mogno aberta.
A voz sombria vinha de dentro dela.
Encostei-me na parede, e me escondi dos vultos que saiam da sala.
Apenas dois ficaram lá dentro, e eu tinha certeza de quais eram.
Demoniza e o tal Ron que nos primeiros dias de Jane me esmagara o braço.
- Elas não estão aqui por causa de suas maldades quando vivos. Pelo menos não Jane.
“ Ron, querido Ron. Já é hora de você saber como são selecionadas nossos condenados por aqui.
Para cada escolhido há uma guerra entre os céus e o nosso inferno.
Não somente vemos as qualidades ou defeitos deles, os lados e atos bons e ruins. Também vemos os prejuízos que esses condenados causariam em cada reino.
As partes de personalidade mais fortes. E os resultados que surtiriam efeito de cada pequena ação.
Maríe, por exemplo, ela é extremamente desobediente. Acha que no reino do céu, o mundo claro e perfeitinho, Maríe ganharia alguma recompensa?
Ela seria punida. Desobedeceria friamente cada ordem que recebesse.
E, depois de cansados, os anjinhos bondosos e carismáticos, receberiam a ordem de enviá-la para cá.
Só adiantei o processo.
Além disso. Maríe NÃO tem a capacidade de ter algum sentimento.
Ela ESTÁ MORTA.
Porém, a capacidade que ela tem de se iludir é ainda maior. E faz com que ela acredite que pode amar ou odiar. Ou qualquer outro sentimento.
O que ela sente por mim é pura fúria ilusionaria, causada pelo fato, de ela achar que ama sua irmãzinha santa.
Ela não me engana. O teatrinho delas é péssimo. Já fui melhor, quando condenada.”
Eu quase chorava agora. Então eu realmente não tinha sentimentos?
Soluçava sem lágrimas, em um silêncio profundo, numa escuridão sombria.
Ela continuou e eu decidi ouvir antes de correr. Precisava saber a verdade de tudo.
“Enfim Ron, a única coisa que ela é capaz de sentir, é a sede de poder, vitória. A sede de provar que sempre tem razão, a sede de querer que tudo que ela faça ou diga seja razão.
E uma hora ela, tais como os outros semelhantes á, irão ver isso. Agora, apesar de tudo isso, os anjinhos do céu ainda são bondosos o suficiente. E fazem questão de querer achar uma saída para todos os condenados arrogantes.
Eles querem oferecer a salvação para todos.
Acontece, QUE A SALVAÇÃO NÃO EXISTE. Principalmente para aqueles, que não foram capazes de realizar tais ações na vida, quem dirá na morte.
Condenados, pela eternidade.
Com isso, essa patética ideia de salvação, as guerras físicas começam.
Temos que realmente escolher os melhores soldados de cada reino, e lutar.
Algumas vezes no reino clarinho e perfeitinho, algumas vezes aqui nas trevas.
As lápides registram os mortos de nosso reino, os perdidos de em lutas.
Muitos conseguem ser mortos com uma estaca especial cravada no peito por um determinado tempo.
E esses são enterrados.
Porém, existem vários outros, que são enterrados ainda vivos, por algum engano, conseguindo fugir.
E até hoje na história da eternidade, nunca vi alguém que fugisse para nosso reino.
Todos estão lá no reinozinho do céu.
E as lápides apodrecem aqui.
Quando a guerra acaba, os vencedores levam a mais nova alma penada.
A guerra acaba quando um dos oponentes de render, quando todos estiverem mortos, ou quando um dos lados perde todas suas armas de luta ou defesa – o que os fazem se render, ou então causará o descanso eterno de todos.”
Injustiça. Foi tudo no que pensei no momento.
“ Agora. No caso de algumas pessoas como Jane....
Ron .. muitas vezes não são necessárias guerras. Muitas vezes a personalidade e atitude das pessoas são o que os condenam.
As vezes, são tão extremamente fortes para determinado lado, que instantaneamente é determinado sue destino.
O caso de Jane, foi exatamente isso.
Seu lado certo era o céu. Sem dúvida alguma.
Tive que dar meu jeito, para que eu não a perdesse, alguém que nesse inferno pudesse me obedecer – sempre ficamos com os pires por aqui, sabe. – e consegui ocultar por algum tempo, sua partida do mundo humano. – ocultar dos mensageiros divinos. – E nesse tempo fiz o ritualzinho que tirou sua alma.
Sem a alma dela, conseguimos ocultar boa parte da personalidade. Eu, por algum tempo, acrescentei minha alma mais repugnante desse inferno nela. O que a fez imediatamente ser escolhida para viver sua eternidade aqui. Depois retirei a mesma de dentro de si, e agora ela vive aqui.
Faço isso muitas vezes. Fácil driblar os mensageiros. Mas é trabalhoso, apesar de fácil.
Aposto que muitas vezes eles me driblam também, mas eles não precisam retirar as almas ruins, eles nem retiram almas. Só acrescentam qualidades. Por favor.”
Jane estava aqui por injustiça? VÍBORA.
O que eu sentia podia não ser ódio ou raiva. Mas eu queria mata-la.
- Entende as regras agora Ron? A verdade de tudo aqui? Aprenda a conviver com isso, e colabore, que terá o prestígio das outras sombras.
- Sim senhora.
Antes de Ron sair eu saí correndo até a mesa de café. Eu tinha certeza que estava vermelha. Não era tão branca como os outros.
Jane estava na mesa. Eu tinha certeza que ela tinha visto o desespero em meu olhar.
- Maríe o que foi? – sua voz era de preocupação.
Meu olhar para ela foi de pena, mas eu não tinha sentimentos. Não podia sentir pena dela. Quanto mais me apegasse á essa ideia mais eu sofreria depois. Meu destino era ser outra daquelas sombras.
Não a respondi, apenas peguei um croissant que estava numa cesta na mesa e corri para fora. Para o cemitério, ver os ‘soldados’ perdidos nas guerras.
Sentei na lápide de minha mãe.
- Ela conseguiu fugir. – sussurrei para mim mesma.
Deitei no chão cheio de folhas secas, fechei meus olhos e me abracei, com frio.
Ideia de jegue usar shorts num tempo daqueles.
Adormeci atormentada por tudo que ouvira.
***
- Me fala agora o que aconteceu! Maríe? Maríe! – Jane me encarava incrédula.
Abaixei a cabeça e a virei para o lado.
Não queria falar com ninguém naquela hora. Nem em hora nenhuma.
- Agente se fala depois Jane. Não quero conversar. Tenho muito que te explicar, mas .. me deixa tá perfeitinha?! – meu tom era agressivo.
- Está bem. – ela saiu andando.
Me levantei. E fui jantar.
Já era quase nove da noite.

Era frio o vento que entrava pela janela da sala, fazendo as cortinas flutuarem, meio que como se estivessem voando.
Uma mão encostou no meu ombro enquanto eu engolia o macarrão.
- Parece cansada. Seus ombros estão tensos.
- Dormir no chão do cemitério não faz bem, demoniza.
- Hum ...
- Vai ficar mesmo me olhando jantar?
- Não .. só vim te avisar, que você não pisa mais fora do seu quarto hoje.
- COMO É QUE É? – quase engasguei com sua fala.
- Você não é surda.
Ela se virou e saiu andando como se nada tivesse acontecido.
Terminei o jantar e decidi obedecê-la.
Afinal, sair para quê?

***
Tomei outro banho e peguei o primeiro pijama de lã que vi.
Com pantufas todas cheia de pelinhos que me incomodavam.
Arrastei lentamente os lençóis da cama e me afundei nos travesseiros.
Depois de alguns minutos encarando o teto de dedos entrelaçados, me virei e reparei na estante uma pilha de livros que eu amava.
Jane. Pensei.
Por favor, pare. – e como eu queria que isso realmente acontecesse.
Minha irmã me amava. Como eu não era capaz de ama-la.
Peguei o primeiro da pilha. ‘Fallen’
Desde alguns anos eu estava ansiosa para lê-lo mas nunca tinha dinheiro suficiente para compra-lo.
E, de repente, sem que eu percebesse, a janela se abriu. E só me dei conta ao sentir o golpe de ar frio me atingindo.
Arrepiei.
Os olhos verde-água inundaram o quarto e eu quase me afoguei sem ar, fitando-os.
A escuridão negra de seus cabelos me tomava completamente.
Eu estava caindo em um abismo.
O abismo da minha ilusão de amor.
Talvez essa viajem dele fosse realmente boa para mim.
- Eu vim.
- Você veio. – disse de cabeça baixa.
- O que você queria?
- Conversar.
- Aqui estou eu.
Me lembrei da minha decisão. NÃO. Não iria me iludir mais.
- Bem, como você disse. Eu QUERIA.
- Não quer mais?
- É esperto. – disse sínica.
- Não vim aqui por nada.
Ele se aproximou de mim, e eu estava frágil demais para afastá-lo.
Seus braços musculosos me envolveram e me aqueceram.
Eram como um cobertor de lã, quente e macio, aconchegante demais, para que eu pudesse desvencilhar-me.
- O que você tem? – ele percebera meu humor.
- Nada.
- Nada não causa isso. – ele sorriu torto e seu sorriso me fez suspirar - O que aconteceu?
- Nada, só me dei conta da realidade.
- E a realidade é .. ?
- Eu ... você não iria acreditar em mim.
- Sou todo ouvidos.
- Eu não tenho sentimentos. É tudo pura ilusão. Não amo Jane, não odeio demoniza não amo ... não amo você.
- Ah! Mas que patético!
- Eu te disse.
- Não. Isso é ridículo. Eu acreditaria em você, se você desse algum sinal de que isso fosse real. Você sente sim e ...
- Não. – Eu o interrompi – Demoniza disse ...
- E vai dar ouvidos á o que ela te diz? – agora ele me interrompeu.
- Ela não me disse nada ..
- Como assim? Você disse que ela disse ..
- Ela disse. Mas não foi para mim. Eu escutei uma conversa. E ela tem ótimas justificativas está bem? E não estou com vontade de lhe explicar todas.
Ele ainda me abraçava, e agora encostava seus cabelos negros nos meus ruivos.
- Esquece tudo o que ela diz. O que você ouve ou vê. O que interessa é o que sente.
- Eu não sinto.
- Sente sim. O que você acha certo ou errado, o que você abomina ou idolatra. Apenas siga seus instintos. Espere aí. Quando negou sentir, quando negou amar e tudo mais .... por que você disse .. eu não amo você?
Eu estava muda.
Ele finalmente ouviu as palavras que queria, que comprovavam meus supostos sentimentos.
Um sorriso enorme tomou seu rosto antes do mesmo se aproximar do meu.
Seus lábios encostaram calmamente nos meus, que se moviam ritmicamente.
Eu tentei me separar e ele me puxou com força para perto de si.
Então segurei em seu pescoço, enquanto ele enlaçava minha cintura e retribui seu beijo com o maior carinho que pude.
Até que a porta se abriu.
- Ora. Mas que lindo!
Nos separamos e me virei para a porta.
Era demoniza.

- Ah, mas é encantador. Um anjo e um demônio juntos.
Nate se colocou na minha frente.
Eu o abracei.
- O que vai fazer? Me matar? – desafiei.
- Não. Nada diretamente á você. No início. Quanto á você – ela se virou para Nate – Vai pro seu céu enquanto eu não deduro suas fugidinhas para o superior.
- Ele já sabe.
- Então é melhor ir antes que eu o mantenha aqui.
- Pois eu fico.
- Nate. Não. Por favor. Vai pro céu. Depois eu juro que agente se fala. Temos a eternidade.
- Rárá. Ah, ingênuos. Ouça sua princesinha do mal. Vá pro céu.
Assenti com a cabeça para ele.
- Ficarei bem.
Ele abriu as asas e se foi pela janela, com angústia estampada em seu rosto.
Ela finalmente se virou para mim.
- Já era seu inferno dos céus. Lojas, mordomias, belezinha natural e todos esses luxos que vocês tem aqui. Eu ainda ofereço tudo isso para vocês e é assim que me agradecem? Se encontrando com o inimigo?
- É isso? Perder as mordomias. Rá. Nunca tive muito. Posso me acostumar de novo.
Eu fui me deitar.
- Ahn, querida. Não é aqui seu novo quarto.
Ela me levou até uma porta ao lado do cemitério.
Nunca havia reparado antes.
A casinha era toda de madeira. – muito mal conservada, por acaso.
Dentro, Nenhum espaço amplo. Apenas uma cama da mesma madeira desgastada, sem colchão, apenas com papelão molhado nela.
Uma escrivaninha de ferro enferrujado. As janelas quebradas e cortinas rasgadas. A chuva invadia o quartinho e criava mofo nos cantos das paredes.
Algumas gotas também caíam do teto desgastado e molhava o criado mudo no canto.
Três gavetas.
Demoniza as abriu para mim. Uma por uma.
- Essas são suas novas roupas.
Eram todas rasgadas, ou então manchadas, cheirando a mofo. Roupas de pessoas de rua, sem realmente condições de nada.
- Se vire para limpá-las. Não sai mais daqui. Duas vezes por dia algumas sombras baterão na porta trazendo sua comida. Se é que podemos chama-las assim.
“É melhor atender, ou então terá que esperar a próxima refeição.
Quanto seu banheiro, há uma portinha no chão, bem ao lado da sua cama. Lá não há janelas, nem portas. Apenas o que precisa para suas necessidades. Se vire com a limpeza.
Abusou demais da bondade do demônio. Te dei corda. Agora se enforcou.
Sua água virá com a comida. Viva bem.”
Sentei no papelão molhado – a única coisa menos molhada que o chão naquele quarto – e olhei pela janela.
Vi Jane sendo levada pelos vultos, provavelmente também fora pega, e agora estava sendo levada para outro quartinho mofado.
Bain estava atrás dela. Eles provavelmente estavam se despedindo, até que, depois de ela assentir com a cabeça – assim como eu – ele partiu.
Eles voltariam. Pensei para mim mesma, tentando obter esperança – palavra que quase não existia no meu dicionário. Muito difícil de se encontrar nele.
Bom, para cada ação, uma reação.
Essas foram nossas consequências.
Sinto muito Jane – sussurrei para mim mesma.